sábado, 21 de fevereiro de 2009

Saí da vida pública e entrei na privada

Nas férias do meio do ano de 2008 aconteceu comigo um fato curioso e desagradável ao mesmo tempo: tive o meu terceiro pneumotórax e logo me encaminhei para o hospital São Lucas. Trata-se de uma bolha de ar que fica entre o pulmão e a caixa torácica que impede o mesmo de se expandir durante a respiração e, além disso, causa uma dor tremenda a cada inspirada e respirada. Nas duas últimas vezes em que tive tal complicação, por coincidência, eu estava em minha cidade de origem, Juiz de Fora, e fui internado, atendido e curado normalmente. Felizmente, nessa terceira vez, ainda nesta cidade de Minas, fui submetido a um processo cirúrgico que impede a possibilidade de eu ter o tal do pneumotórax novamente.

Mas vamos deixar esses fatos específicos de lado e vamos ao que realmente importa: o tal do fato curioso e ao mesmo tempo desagradável que se sucedeu comigo nessas férias.

Como já disse, ao sentir os sintomas do pneumotórax (que por ser a terceira vez que o tenho, já o identifico até com cheiro), me encaminhei ao hospital São Lucas na emergência, lá chegando, fui atendido normalmente e logo submetido ao processo cirúrgico para drenar a bolha que causa a complicação em questão na emergência mesmo (a bolha estava bem grande nesse momento, era necessário uma cirurgia emergencial). Até aí, nada além do comum para um paciente com esse problema. Logo seria encaminhado a um quarto do hospital, segundo me disseram inicialmente, pois, após tal cirurgia, demoraria dois dias para drenar o ar do pneumotórax (o dreno deveria ficar dentro da caixa torácica extraindo a bolha nessas 48 horas).

Foi aí que começou o tal do fato desagradável: recebi a notícia de que eu deveria (com essas palavras mesmo) me “retirar do hospital até meia noite”, pois o meu plano de saúde não me dava direito a ser internado no Rio de Janeiro, apenas em Juiz de Fora. E tudo isso com um tubo de plástico inserido entre o meu pulmão e a minha caixa torácica. Acredite, nunca senti antes uma dor maior do que um simples movimento do braço próximo ao dreno ou qualquer outro movimento que me fizesse movimentar sequer um músculo perto da região onde foi feita a cirurgia. Sem contar que um simples inspirar e respirar nesses dois dias de drenagem se tornaria uma experiência dolorosa, porém necessária. E infelizmente, de acordo com os médicos que me fizeram a cirurgia, essa dor do dreno era impossível de ser anestesiada.

Portanto, eu era um paciente num quadro - digamos... - delicado. Estava no meio de um processo cirúrgico (uma vez que são necessárias 48 horas para se tirar o dreno), porém sendo literalmente expulso do hospital.

Ora, mas vivemos em uma sociedade livre! Veja bem: um morador de uma favela, um somaliano subnutrido ou um mendigo tem todo o direito de comprar um Astra 2008, não é mesmo? Um desempregado tem o pleno direito de comprar um apartamento a beira-mar em Ipanema ou na Barra da Tijuca; um assalariado tem todo o direito de entrar em greve, mesmo sendo ameaçado de demissão. Como eu também sou um cidadão livre, numa sociedade livre como todos esses outros, a Unimed me deu três opções como solução para o meu problema: poderia pagar uma quantia absurdamente cara, por cada duas horas, para permanecer no São Lucas (sem contar com os custos adicionais como alimentação, raios-x, tomografias e etc); poderia pagar mil e duzentos reais para ser transferido para um hospital em Juiz de Fora (no caso levado por uma ambulância particular-especial, a qual presta serviços de excelência, mas que é bastante caro) ou ser transferido para um hospital público e aguardar um leito.

Inserido nesse contexto de liberdade plena da sociedade moderna, tendo esse amplo leque de opções, preferi a segunda (o que trouxe sérios problemas financeiros para a minha família). E assim, tive a pior viagem da minha vida, onde cada balançada e cada curva que a ambulância fazia me causava uma dor descomunal. Felizmente, chegando a Juiz de Fora fui atendido normalmente e ainda descobri que a cirurgiã no São Lucas havia cometido um erro grave na cirurgia: o dreno por onde o ar deveria sair do sistema de drenagem foi colocado em meu tórax e o que deveria ter sido colocado em meu tórax, por sua vez, colocado para fora do sistema de drenagem, o que resultou no processo inverso: a bolha de ar que deveria ser drenada ao invés de sair entrou, resultando em um pneumotórax total que me trouxe altos riscos e mais uns bons dias no hospital. Portanto, dizer que o atendimento de saúde privada é excelente e livre de problemas como na rede pública (que por sua vez, seria incondicionalmente “atrasada”, “precária” e etc.) não passa de uma falácia.

Após viver tal experiência, fica de uma clareza solar para mim de que o sistema de saúde privada é completamente falho e cheio de contradições. O que aconteceu é inaceitável. Um paciente ser literalmente atendido pela metade e expulso do hospital para mim não é “nada mais do que normal dentro dos procedimentos burocráticos”, é realmente inaceitável. Se analisarmos a situação sem juízo de valores, trata-se de um paciente sendo expulso do hospital durante um procedimento cirúrgico por causa do lema do sistema de saúde privado: “A saúde não é um direito, e sim um negócio.” Acredito que um sistema de saúde que parte desse pressuposto está completamente sujeito a falhas como essa. Se eu estivesse em uma situação de mais risco ou se a distância que eu tivesse que atravessar fosse maior, talvez as cosias não tivessem ocorrido dessa maneira.

É praticamente um terrorismo o que as empresas de plano de saúde fazem com os pacientes. Uma vez que as nossas vidas estão nas mãos deles, eles podem lhe pedir o que bem entenderem e não estão nem aí. E esse tipo de coisa é tido como natural (e o pior, completamente aceitável) em um país em que o investimento para saúde pública corresponde apenas a uma porcentagem ridícula do PIB, pois eles sabem que seus clientes querem fazer de tudo para não ter que passar por um hospital público onde muitas vezes um grande número de pacientes morre esperando para ser atendido.

No meu caso, o discurso foi bem simples: “Olha, você tem a plena liberdade de gastar o olho da cara, a cada duas horas; pagar 1200 reais para ser atendido em Juiz de Fora ou ser simplesmente expulso daqui!”. É um discurso que não fica muito longe de “faça o que nós exigimos ou tiramos a sua vida.” E, seguindo essa mesma lógica, isso também não difere muito de quando alguém aponta uma arma para a sua cabeça e lhe faz algumas exigências, e em caso contrário, retira-lhe a vida.

Portando, não passa de um argumento vago, precipitado e falso o velho “A saúde ser privada é bem melhor! Você pode pagar mensalmente uma quantia, mas você terá um atendimento de alta qualidade!”. Eu constatei por experimentação exatamente o contrário: o sistema de saúde privada colocou a minha saúde em risco para obter mais lucros e ainda cometeu um erro no processo cirúrgico. E com certeza deve haver muitas outras falhas de natureza burocrática na Unimed ou em qualquer outro plano de saúde. Mas não posso mentir: apesar dos pesares o atendimento é mais confiável do que na rede pública devido ao abandono do mesmo pelo Estado. Mas infelizmente, no nosso país ter acesso a esse tipo de plano é para uma parcela muito pequena da sociedade, e mesmo assim essa parcela está sujeita ao terrorismo dos planos de saúde privados. Portanto você tem a opção de correr os riscos do atendimento público abandonado pelo Estado ou estar sujeito ao terrorismo dos planos privados.

Mas e se o Estado levasse com mais seriedade o sistema de saúde pública? Digamos que o investimento e a administração de todo esse sistema fosse realmente sério. Precisaríamos passar por esse tipo de terrorismo dos planos de saúde? Se a saúde realmente fosse um direito ao em vez de um negócio? Acredito que as coisas teriam ocorrido de forma bem diferente. Se todos nós tivéssemos o direito de sermos atendidos com qualidade pela saúde pública, eu simplesmente teria me encaminhado para o São Lucas e teria sido atendido normalmente sem ter que passar por esse tipo de constrangimento. E mais um detalhe, pensando a partir de minhas vísceras, ou melhor, do dreno que estava no meu pulmão, pensei em gritar, neste texto, uma frase de Brecht:
“Desconfie de tudo que lhe dizem que é natural...!”



Gabriel Souza Bastos 4º período



(essa crônia foi enviada para o email do blog)

Espero que curtam!

Beijinhos.

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